Bicha da Justiça: a startup que oferece assessoria jurídica para LGBTQIA+
Conheça o projeto que criou uma rede de advogados especializados em apoiar a comunidade LGBTQIA+
Os direitos da população LGBTQIA+ são recentes no Brasil, ainda não contemplando todos os grupos da sigla, e foram construídos de uma forma bem diferente dos demais.
Vivemos em um país que tem uma tradição legalista e o departamento de leis, que deveria prever os direitos da população LGBTQIA+, dificulta ainda mais sua efetividade e transmite a impressão de que o direito não existe para um público que é marginalizado e discriminado pela sociedade.
A startup Bicha da Justiça surgiu para descomplicar e mudar esse cenário. Trazendo informações sobre os direitos LGBTQIA+, o projeto atua em dois pilares, educação e inclusão jurídica, usando uma linguagem acessível e produzindo bastante conteúdo nas mídias sociais, além de formatar cursos online que conscientizam e ajudam na concretização destes direitos.
Fundada em 2018 pela advogada Bruna Cristina Santana de Andrade, 33, e pela administradora Flávia Maria dos Santos, 42, a Bicha da Justiça é uma mistura de lawtech (direito e tecnologia) com edtech (educação e tecnologia) e treina advogados para atenderem o público LGBTQIA+, trazendo um ambiente de compartilhamento de informações e cooperação mútua.
Com um nome inspirado na equipe de super-heróis “Liga da Justiça”, a startup já conta com mais de 40 mil seguidores no Instagram e, em 2018, ganhou a categoria “Voto Popular” do Startup Show, o maior reality de empreendedorismo do Brasil.
Por ser uma plataforma online, a Bicha da Justiça é democrática em seu acesso. Uma pessoa que mora no interior consegue ter a mesma assessoria e orientação que alguém que vive na capital.
Pensando em trazer mais informação para a população trans e como exigir seus direitos, a Balonè News entrevistou a fundadora Bruna Andrade, trazendo questões importantes ao amparo jurídico das pessoas trans.
Confira:
Há alguma lei no Brasil de amparo à população trans?
Sobre essa questão é preciso entender de uma forma mais ampla o que são normas: lei é uma espécie de norma. Existem algumas normas que garantem proteção a direitos.
Há sim normas que garantem proteção da população trans.
A primeira diz a respeito ao nome social, que é o direito de se acrescentar nos documentos o nome com o qual a pessoa se identifica. Esse direito do nome social existe desde 2016 e foi instituído pelo decreto federal 8727 e vale para o Brasil inteiro, sendo a base quando a gente fala de nome social. Hoje já se pode alterar o nome social no RG, no CPF, nas carteiras de habilitação, no próprio título de eleitor, nas instituições financeiras, banco, carteira de banco, etc...
A segunda grande norma que temos na proteção dos direitos da população trans é o provimento 73 de 2018 do Conselho Nacional de Justiça.
E esse provimento permite, hoje, a alteração completa de nome e de gênero, em um processo que se chama “Retificação de nome de gênero”. No nome social é possível acrescentar o nome com qual a pessoa trans se identifica. Na retificação é possível alterar por completo, onde sai o primeiro nome de registro e fica só o nome no qual a pessoa se identifica e o gênero também alterado. Quando você altera nome e gênero na certidão de nascimento, absolutamente todos os documentos podem ser alterados, como carteira de trabalho, passaporte, documentos de conclusão de curso e, assim, sucessivamente. Hoje nós temos essas duas grandes normas amparando a população trans.
Além disso, nós temos a lei de LGBTfobia, que é a lei 7716. Ela é de 89, mas o crime de transfobia, ele só foi reconhecido em 2019, junto com o crime de homofobia.
Então, desde 13 de julho de 2019, essa lei também protege as pessoas trans. Além disso, nós temos uma série de regulamentos do ponto de vista do Ministério da Saúde, que garante tratamento e acompanhamento integral quando se fala de saúde. Então, isso permite que as pessoas trans possam fazer um acompanhamento com a equipe multidisciplinar, harmonizar e até mesmo fazer as cirurgias dos protocolos transexualizadores.
Isso é uma política pública já bem antiga. Desde 2008 temos isso institucionalizado no Brasil. Claro que isso foi crescendo nos últimos anos e ampliando. Mas hoje, eu considero esses 4 pilares de formas legislativas normativas de proteção à população trans.
Qual é o maior desafio enfrentado pelos trans no âmbito legal?
São dois. Primeiro que essa construção dos direitos trans é extremamente recente, então nós temos aí, de produção normativa, mesmo dois. Três anos pra cá, fazendo 3 anos que temos uma preocupação maior do Estado brasileiro de regulamentar o direito das pessoas trans. Então, por ser muito recente, é difícil de implementar, porque existe uma cultura de falta de conhecimento, preconceito e, assim, sucessivamente.
E o segundo desafio, é um desafio cultural mesmo. Porque como a maior parte desses direitos, eles foram previstos, não por uma lei, mas por normas ou decisões judiciais em um país onde é necessária uma lei como tradição, pede-se um papel escrito para poder ter um pouquinho mais de eficácia.
As pessoas trans têm um desafio muito grande de fazer valer os seus direitos, ainda embora haja essa previsibilidade normativa. Na prática, existe uma dificuldade muito grande. Existem também alguns direitos que ainda não foram conquistados, como por exemplo a questão relacionada à adoção de identidade de gênero não binária, de retificação. Os direitos são para pessoas trans binárias que querem transicionar do feminino para o masculino e do masculino para o feminino, mas ainda não contempla as pessoas não binárias, um gênero que ainda não é respeitado como deveria sob o ponto de vista normativo.
Como / onde uma pessoa trans deve procurar ajuda em caso de violência? Existe alguma delegacia especializada?
Existem algumas cidades onde se têm delegacias especializadas em população LGBTQIA+ e, inclusive, às pessoas trans. Posso citar alguns casos: geralmente são cidades mais estruturadas, maiores. Metrópoles como São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Salvador e assim, sucessivamente.
Então, existe, sim, essa possibilidade e é onde eu recomendo que se procure em um primeiro momento porque são profissionais mais preparados para lidar com as questões ligadas à identidade de gênero. Agora, quando estamos falando sobre mulheres trans, também é possível fazer denúncia na Delegacia da Mulher, quando esse tipo de violência acontece no contexto familiar, ou seja, de um parente, um relacionamento e, assim, sucessivamente.
Existem outros Órgãos extremamente relevantes de proteção dos direitos das pessoas trans, sendo um deles, o Ministério Público. Cada cidade tem um Promotor de Justiça, que é o funcionário do Ministério Público.
E o Promotor de Justiça tem muitas atribuições, tanto para determinar a investigação, quanto para cobrar medidas. Tanto para determinar que a polícia tome uma medida específica, quanto a esse trâmite dentro do judiciário, junto ao juiz. Então hoje, o Ministério Público é uma excelente opção para se fazer denúncias de violência e denúncias de violação de direitos, também. Quando, por exemplo, não se tem acesso a uma política pública de saúde da pessoa trans.
Outro Órgão que também funciona bastante, que pode dar suporte, é a Defensoria Pública. Então, sob o ponto de vista da violência, primeiro nas delegacias especializadas, se houver. Se forem mulheres trans, nas delegacias de proteção das mulheres e, se não tiver, nas delegacias comuns.
Como funciona a questão do nome social / nome de registro e retificação de gênero?
São dois direitos distintos. Nós temos um direito ao nome social, que é a pessoa trans colocar em alguns documentos o acréscimo com o nome com o qual se identifica, mas não sai o nome de origem. Vai haver os dois nomes, o nome social e o nome de registro e não é possível alterar o gênero. Costumo dizer que o nome social é um paliativo e recomendado para pessoas trans que não conseguem fazer a retificação completa.
O outro direito, totalmente distinto, é a retificação de nome e gênero. Esse é uma mudança completa da documentação e começa a partir da mudança da certidão de nascimento ou casamento, se isso for o caso. E a partir dessa alteração, altera-se todos os demais documentos como RG, CPF, CNH, passaporte, carteira de trabalho, título de eleitor e certidão de conclusão de curso e, assim, sucessivamente.
O nome social é um direito e a pessoa vai solicitar a inclusão no próprio Órgão onde ela tirou aquele documento pela primeira vez, como se fosse um procedimento de segunda via. Então, por exemplo, em São Paulo, ele é solicitado no Poupatempo. A pessoa vai ao Poupatempo solicitar a inclusão do nome social, porque é uma pessoa trans, e vai sair ali uma segunda via do documento com esse acréscimo. Já, a retificação do nome de gênero é feita no Cartório de Registro Civil e é regulamentada pelo provimento 73 do Conselho Nacional de Justiça. Esse procedimento é muito mais burocrático, a pessoa trans precisa separar uma série de documentos, uma série de certidões, para que ela consiga dar entrada no cartório onde vai se alterar a certidão de nascimento ou casamento e, a partir dessa alteração, a própria pessoa pode solicitar a modificação de documento por documento em todos seus bancos de dados.
Que medidas devem ser tomadas para implementação de direitos plenos à população trans / LGBTQIA+?
Com certeza é uma construção. Existem vários pleitos para serem analisados no Supremo Tribunal Federal, como por exemplo, o uso do banheiro conforme a identidade de gênero, a questão relacionada à proibição de associação à educação, relacionada à identidade de gênero, sendo aí, como uma ideologia de gênero.
Mas, além disso, nós temos uma atuação relacionada à questão de políticas públicas e processos legislativos. Então, é preciso ter mais representatividade no Congresso Nacional e no próprio Executivo para viabilizar esses direitos de uma forma completa.
Como denunciar LGBTQIA+fobia?
Existem vários aspectos sobre LGBTQIA+fobia. Você encontra no ambiente de trabalho, no ambiente da escola, na sociedade, nos Órgãos públicos. Então, dependendo, cada um desses vieses de onde a LGBTQIA+fobia está acontecendo, pode ser que a denúncia aconteça de alguma forma diferente.
O pontapé inicial para denunciar e fazer o boletim de ocorrência é relatando os fatos, porque a partir desses relatos se instaura ali a investigação.
Se o boletim de ocorrência, por algum motivo, for negado, existem dois Órgãos que a pessoa pode procurar para dar prosseguimento a essa denúncia. O primeiro deles é o Ministério Público, como já mencionado, porque é o Ministério Público que faz o controle da atividade policial, então ele pode diretamente receber a denúncia e determinar que a autoridade policial, o delegado, abra a investigação para que a questão seja elucidada.
E, o segundo, é a própria Corregedoria de polícia da cidade onde a pessoa mora.
O investigador, ou quem estiver para receber a denúncia, não pode se negar a abrir o boletim de ocorrência. A corregedoria é responsável por apurar esse desvio funcional.
Quando estamos falando de LGBTQIA+fobia no ambiente de trabalho, é possível também denunciar aos Órgãos de fiscalização da empresa, RH, corregedoria, compliance, etc.
Depende muito de onde a LGBTQiA+fobia está ocorrendo.
E recomendamos sempre procurar um advogado ou um defensor público para que a questão seja prosseguida, processe e responsabilize os envolvidos.
Acompanhe o instagram da Bicha da Justiça @bichadajustica